Odilon de Oliveira, o juiz que já foi condenado à morte

IVIAGORA


Um juiz destemido, quixote solitário, trabalhava em Ponta Porã, fronteira paraguaia com Pedro Juan Caballero, desafiando poderosos cartéis do crime organizado. Sofria sozinho, sem apoio de ninguém, quando eu soube da sua existência. Quis o destino que coubesse a mim projetar a sua história para o Brasil, tornando-o conhecido nacionalmente.

Cercado dia e noite por agentes federais, encarregados da sua segurança pessoal, pediu ao Conselho Nacional de Justiça que essa proteção continuasse para que ele pudesse se aposentar.

Assim foi. Este é Odilon de Oliveira, juiz federal que abraçou a política, candidatou-se a governador pelo Mato Grosso do Sul e perdeu a eleição, em segundo turno, por uma pequena margem de votos na reeleição de Reinaldo Azambuja.

Odilon foi juiz em Ponta Porã. Ameaçado, buscou hospedagem num quartel do Exército (11º Regimento de Cavalaria Mecanizada) na fronteira. Assim mesmo, houve ali um ataque a tiros. Decidiu, então, dormir dentro do próprio fórum, num quartinho improvisado, permanentemente vigiado por agentes da Polícia Federal.

Passei essas informações para Gustavo Costa, um dos melhores profissionais da RecordTV, e assim o juiz começou a ser conhecido numa bela e com comovente reportagem. Sucessivas matérias foram feitas porque o magistrado estava mexendo em vespeiros até então intocáveis.

Para se ter uma ideia, antes dele o juiz estadual Leopoldino Marques do Amaral, de Cuiabá, preparou um dossiê contendo estarrecedoras informações sobre corruptos e corruptores, incriminando até superiores hierárquicos, personagens habituais em festas promovidas por traficante numa fazenda, e assim mesmo elaborando sentenças como se isso pudesse ser a coisa mais natural do mundo. O dossiê foi entregue em Brasília, ao Superior Tribunal de Justiça.

A resposta foi o mais pesado dos silêncios. O juiz Leopoldino foi encontrado morto, com muitos tiros, em Pedro Juan. Documentos estavam ao lado do corpo: os bandidos queriam que todos soubessem que era o magistrado que havia sido executado. Pelo tráfico. O juiz Odilon também foi condenado à morte.

Como fazer para enfrentar esse tipo de crime, numa região de fronteira seca, totalmente aberta? Com as teorias pueris dominantes, alheias ao que acontece no poderoso mundo do crime organizado? O juiz Odilon de Oliveira pensou, pensou, e resolveu libertar-se da gaiola forense que aprisiona autoridades — judiciárias e policiais — que ousam enfrentar o poder bélico dos traficantes.

Escreveu nos autos: “Se a Justiça Federal, em qualquer uma de suas circunstâncias, se comportar com exagerada soberba em matéria de provas quanto ao tráfico de entorpecentes, deixando de compreender as dificuldades que o Ministério Público e a Polícia Federal enfrentam para obtê-las, também pela natureza desse crime, complexidade das organizações e modus operandi, poucas vezes se conseguirá condenar grandes peixes”.

Certo, o juiz. Há tubarões.

O Brasil, de muitos doutores e poucos brasileiros, como escreveu Eça de Queirós, vive em bolhas desconectadas da realidade. Uma delas envolve o mundo criminal. Daí o juiz Odilon consignar nos autos: “É utopia pretender que o Estado-repressor concorra ou supere, com eficiência, a engenharia empregada na traficância internacional”.

Em outras palavras, a cocaína lava mais branco que o dinheiro sujo do tráfico: “O Judiciário não pode tornar-se insensível às dificuldades que a polícia encontra para conseguir provas em torno do tráfico e da lavagem”. Advertiu, dentro dos autos: “Se o tráfico de drogas continuar sendo tratado com pajelança e a lavagem rastreada com tanta burocracia, este país, com certeza, irá se transformar num narcoBrasil, e o mundo, num narcomundo”.

 

Palavras difíceis de ouvir, letras difíceis de serem lidas. O juiz Odilon toca em pontos nevrálgicos. Nos autos, ainda: “Hipocrisia e ingenuidade são um bálsamo para a megatraficância”.

Conheci assim o magistrado. Primeiro em Ponta Porã, onde devassou o império de décadas erguido por Fahd Jamil Georges, o Turco, durante muitos anos um verdadeiro rei da fronteira, onde mandava e desmandava. Autos transformados em tribuna, o juiz Odilon foi para cima do rei. Fahd chegou a recorrer ao governador de Amabay, no Paraguai, para que o implacável juiz “amolecesse seu coração”. A resposta foi uma pesada condenação, apreensão de bens e a colocação de gigantescos outdoors por toda parte, repletos de fotos e o apelo: “Se busca!”.

Foi desse modo que Fahd entrou na lista dos homens mais procurados pelo governo dos Estados Unidos e o terceiro do mundo na relação dos mais procurados por narcotráfico. Em Pedro Juan, os EUA construíram um quartel da DEA (Drug Enforcement Administration), a poderosa agência anti-drogas norte-americana. Finalmente, novos tempos no Paraguai.

Quis conhecer bem de perto esse juiz fora de série. Passei um final de semana na casa dele, em Campo Grande, onde Odilon assumiu a vara responsável pelos processos de lavagem de dinheiro e ainda a corregedoria da penitenciária federal de segurança máxima na cidade. Foi tudo muito agradável e emocionante. Dentro da casa, dia e noite, agentes federais. No churrasco de sábado, até o churrasqueiro era da Polícia.

Fui puxar mais um pedaço de carne quando percebi que se tratava do cano de metralhadora. O juiz sorriu e me ofereceu uma dose de uísque, com pedras de gelo formada por cubos de água de coco. É o estilo dele. A esposa reclamou que não podia, por causa das rígidas normas de segurança, sequer decidir como ficavam as cortinas da casa, permanentemente fechadas para não permitir nenhum tipo de visualização.

No escritório da casa, o juiz se descontraiu. Contei a ele que havia conhecido pessoalmente o seu inimigo número 1, Fahd Jamil, indo à sua casa, em Ponta Porã — réplica da mansão de Elvis Presley — quando o delegado do DOPS de São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury, caçava os sequestradores e assassinos de Ludinho, filho do então senador Lúdio Coelho, em Campo Grande, em busca de informações.

O juiz ouviu curioso essa história, até porque ele mandou confiscar a mansão do rei da fronteira. Odilon ficou mais surpreso ainda quando eu lhe contei que Fahd havia fornecido todas as bebidas para a posse do presidente-general João Batista Figueiredo e que um avião da Força Aérea havia transportado caixas e mais caixas para Brasília.

Surpreso com as revelações, Odilon me confidenciou: a inteligência da Polícia Federal descobrira um plano de Fahd para matá-lo lentamente, deixando-o agonizante num chiqueiro de porcos, em prolongada humilhação até a morte. O juiz passou a se referir a Fahad como “seboso” e aos traficantes como “sebosos”. Quis saber o motivo. Sebo, produto da secreção de glândulas, é parte inútil num pedaço de carne. Precisa ser cortada. Também pode ser referência a alguém metido a sebo, isto é, tão pedante que pretendesse trancar o juiz num chiqueiro.

Antes de estar com o juiz, percorri novamente a fronteira, que conheço nas palmas das mãos. Por que é vulnerável assim? Porque patrulhar em toda a sua extensão significaria mobilizar permanentemente 4 mil homens. O efetivo da Força Terrestre é de 200 mil para todo o Brasil. A estrutura é praticamente a mesma desde a guerra do Paraguai. O sistema de polícia é deficiente. Resultado: a fronteira seca é aberta. Dela partem os problemas que vão afligir as grandes cidades: drogas, armas e munições.

O juiz, agora aposentado, continua escoltado. Na campanha para o governo do Mato Grosso do Sul, identificou-se como juiz Odilon. Capitalizou 47,65% dos votos, demonstrando forte potencial para a vida política. Sentiu-se “politicamente vitorioso”, como diz. Ficou para trás a vida no Judiciário.

Na fronteira selvagem, poder e morticínio sem fim se entrelaçam, com rajadas de balas, execuções, disputas ferozes para decidir quem manda mais. Odilon já fez, muito bem e com sacrifícios pessoais, a sua parte. Precisaria de um sucessor à altura. Não tem.